O veneno é um furo na teoria da evolução. De acordo com o Darwinismo clássico os bichos desenvolvem, por seleção natural, as características que garantem a sua sobrevivência. Adquirem seus mecanismos de defesa e ataque num longo processo em que o acaso tem papel importante: a arma ou o disfarce que o salva dos seus predadores ou facilita o assédio às suas presas é reproduzido na sua descendência, ou na descendência dos que sobrevivem, e lentamente incorporado à espécie. Mas a teoria darwiniana de progressivo aparelhamento das espécies para a sobrevivência não explica o veneno. O veneno não evoluiu. O veneno esteve sempre lá.
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A comparação não é descabida. Acredito que a mente é um produto cultural, e que descontadas coisas inexplicáveis como um gosto congênito por couve-flor ou pelo "Bolero" de Ravel, somos todos dotados de basicamente o mesmo material cefálico, pronto para ser moldado pelas circunstâncias. Mas então como é que ninguém aprende a ser afinado? Quem é desafinado não tem remédio. Nasce e está condenado a morrer desafinado. No peito de um desafinado também bate um coração, certo, e o desafinado não tem culpa de ser um desafio às teses psicológicas mais simpáticas. Mas é. Matemática se aprende, até alemão se apreende, mas desafinado nunca fica afinado. Como veneno, é de nascença. O que explica não apenas o crime patológico como as pequenas vilanias que nos cercam. A pura maldade inerente a tanto que se vê, ouve ou lê por aí. O insulto gratuito, a mentira infamante, a busca da notoriedade pela ofensa aos outros. Ressentimento ou amargura são características humanas adquiridas, compreensíveis, que explicam muito disto. Pura maldade, só o veneno explica.
Referência.
VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Globo. 24 de fevereiro de 2005.