Feitos os esclarecimentos digo que, entre os animais destituídos de razão, também denominados animais inferiores, o
canibalismo é prática relativamente contumaz e pode ter várias motivações, uma delas é a restrição ou privação de alimento. Lembro-me da época de acadêmico de Ciências Biológicas (bacharelado), lá pelos anos de 1992... A minha turma era composta de sete alunos e durante a disciplina
Etologia (ramo da biologia que estuda o comportamento animal) a turma recebeu do professor uma gaiola contendo um casal de ratos e recebemos instruções para realizar o nosso primeiro experimento biológico. As instruções foram as seguintes: 1) A gaiola deve ser colocada e mantida em local agradável no que diz respeito a temperatura, umidade e luminosidade; 2) A área da gaiola jamais deverá ser alterada; 2) Os animais deverão receber diariamente e em horário definido, durante o semestre letivo, uma quantidade fixa de ração e água que serão superiores às necessidades diárias dos dois animais; 3) A equipe deve efetuar registros de tudo o que for observado no comportamento desses animais. Para que o leitor acompanhe o raciocínio, vou fazer algumas considerações sobre a biologia dos roedores: São animais com grande capacidade de adaptação e que em situações ideais atingem rapidamente o
clímax reprodutivo, resultando em ninhadas em períodos dentro do limite extremo da capacidade da espécie. Na verdade, o incremento reprodutivo é um comportamento elementar em qualquer espécie biológica, uma vez que estamos falando de estratégia de perpetuação. Isso tanto é verdade que os micróbios - em situações favoráveis - dispensam a reprodução sexuada e recorrem à reprodução assexuada (cissiparidade/bipartição) para garantir o rápido povoamento do território parasitado. E apenas em um segundo momento da colonização é dada importância à troca de
gens para garantir variabilidade.
Mas, voltando para o nosso experimento com o casal de ratos, os dias passavam e tudo acontecia conforme planejado, ou seja, gaiola bastante ampla para dois indivíduos, excesso de água, excesso de ração, temperatura e umidade ideais controladas, tudo perfeito! A resposta biológica irracional não foi outra senão início e incremento no limite extremo da função reprodutiva: A ratazana era fecundada, gestava, paria, iniciava nova gestação... Os filhotes atingiam a maturidade sexual precocemente e também entravam no ciclo reprodutivo. Até que os problemas começaram a aparecer: O espaço que antes era abundante já ficou insuficiente. A ração e a água também já não suprem as necessidades da população confinada. O que era favorável passou a ser desfavorável e o nível de tensão e estresse aumentam, o que é constatado pelo aumento da agressividade e inquietação dos animais no confinamento... A partir de então, as ninhadas que vão surgindo são devoradas pelos próprios indivíduos no esforço pela sobrevivência. Nesse ambiente o
canibalismo passa a ser a válvula que controla a população, ajustando-a às condições impostas pelo ambiente.
O que relatamos até então está perfeitamente enquadrado no que chamamos de comportamento instintivo. Mas o que é instinto? Esse comportamento é controlável? É comportamento restrito aos animais irracionais? O homem pode abrir mão de seu comportamento racional e agir por instinto?
Instinto é palavra de origem no Latin (
instinctu) e designa estímulo ou impulso natural e involuntário pelo qual os animais, incluindo o homem, executam certos atos sem consciência e, portanto, sem reflexão sobre as conseqüências. Pode também significar uma aptidão inata, ou seja, de nascença. Mas, geralmente, a resposta instintiva está associada à necessidade de autopreservação, ou seja, de sobrevivência. O detalhe é que as experiências, as sensações, as emoções aprimoram o instinto e esse aperfeiçoamento é transmitido dentro da espécie como herança biológica. Isso explica, por exemplo, porque um animal reconhece e identifica outro animal de outra espécie como inimigo natural e que deste deve fugir, impelido pelo instinto de sobrevivência.
Não se questiona o processo evolutivo pelo qual passou o
Homo sapiens (nome científico atribuído à espécie humana) desde o seu brotamento a partir do ancestral primata comum. Nos momentos iniciais da nossa espécie a diferença de comportamento e de atitudes em comparação com os outros animais eram mínimas. No caso do
Homo sapiens, o arcabouço constitutivo do
sistema nervoso possibilitou que o processo evolutivo aprimorasse substancialmente esse compartimento, dotando o homem da capacidade de raciocínio e reflexão. Ou seja, a espécie humana passou a se diferenciar das demais espécies por ter a consciência do aqui e do agora. As sua atitudes deixaram de ser mediadas apenas pelo instinto. Na verdade, o instinto passou a ser um componente secundário, integrante do
sistema nervoso vegetativo. A pergunta que fica é a seguinte: Porque o processo evolutivo não suprimiu do DNA humano as sequências que determinam as atitudes instintivas? A pergunta é muito interessante, mas a resposta é obvia... há situações na interação do homem com o ambiente em que a decisão tem que ser tomada em milionésimos de segundo, sob pena de causar danos irreparáveis ao organismo, inclusive a morte. Sendo assim, associar instinto à sobrevivência é por demais apropriado.
Por isso, mesmo após milhares de anos de evolução, trazemos no nosso código genético, de forma latente, os
genes que modulam o nosso impulso antropofágico: Em uma situação ideal, com todas as variáveis sob o controle da razão, não pensamos e sequer admitimos a possibilidade de ingerir a carne do nosso semelhante. Mas numa situação de estresse extremo, quando as variáveis que julgamos importantes estão desfavoráveis, o componente racional do nosso
sistema nervoso é desligado, pois está em jogo a condição mais elementar de perpetuação da espécie que é a sobrevivência. Aí a
antropofagia que era algo inadmissível para o nosso componente racional passa a ser considerada, admitida.
O exemplo mais emblemático de antropofagia entre
humanos civilizados é retratado a partir de um acidente aéreo que ocorreu na Cordilheira dos Andes em 1972. Os relatos dão conta que com a queda de um avião de passageiros algumas pessoas sobreviveram e após vários dias sem qualquer perspectiva de socorro e uma vez tendo consumido todo o alimento disponível à bordo, os sobreviventes passaram a se alimentar de carne humana daqueles que faleceram com o acidente. Nesse caso a decisão de consumir carne humana também foi influenciada pelo fato de os corpos não terem apodrecidos, uma vez que a região onde aconteceu acidente possui temperaturas extremamente baixas que promoveu a conservação dos copos. Relata-se, inclusive, que os sobreviventes utilizaram fragmentos da fuselagem do avião como utensílio de corte. Pelo que me consta, esse acidente virou roteiro de filme, mas não assisti.